Clássico de Cervantes chega ao seu quarto centenário como o maior monumento da literatura universal
velho fidalgo Alonso Quijano perdeu o juízo no alucinante labirinto do universo dos livros de cavalaria e andou por cidades como Toledo, Albacete e La Roda para atravessar as fronteiras da língua espanhola. A singular história de Miguel de Cervantes (1547-1616) chega ao seu quarto centenário como o maior monumento da literatura universal. Publicada no final de 1604, Dom Quixote de La Mancha é uma obra na qual os leitores mais imaginativos podem passar toda a vida descortinando véus para descobrir outros, ao infinito. Eles podem se perguntar que estranhos motivos levaram o autor espanhol a tecer uma longa narrativa sobre um lunático perdido e um rústico lavrador de "pouco sal na moleira". O livro, porém, possui um fundo falso: na verdade, Dom Quixote é uma fábula sobre a eterna luta da inteligência contra a estupidez, da luz contra a escuridão. Essa contenda representou a malfadada história dos grandes escritores espanhóis do chamado Século de Ouro, onde muitos deles foram obrigados a fugir da fogueira do Santo Ofício pelo desterro ou a publicação de sua obra sob pseudônimos, ou então tomar a postura de enfrentar toda a hipocrisia da Inquisição.
Quando Cervantes se tornou escritor, ele já era experiente nessas lides de censura da Santa Inquisição. Discípulo de López de Hoyos e filho de cristãos novos, ele sabia de cor toda a genealogia de perseguições contra o seu sangue. Ao mesmo tempo, era um cristão que se considerava autêntico e avesso a todo e qualquer tipo de intolerância. De forma alguma Cervantes poderia aceitar que homens perseguissem uns aos outros em nome do amor fraterno entre os filhos do mesmo Deus. O autor de Dom Quixote existiu na época em que, para viver em paz na Espanha daquele tempo, a única garantia era a "pureza de sangue", isto é, um documento que afirmava que seu portador não era descendente de mouriscos ou marrancos (ou judeus), ou seja, era um "cristão velho". Dentro da rigorosa casta do país, a missão e finalidade dos cristãos era apenas a guerra e o trabalho braçal.
Fundo falso
Ou seja, trabalhos manuais eram atividades desprezadas pelo sistema. As profissões liberais, o comércio e demais atividades técnicas ou humanísticas podiam significar a existência de alguma linhagem hebraica. Em Dom Quixote de La Mancha , Cervantes se retira de cena como narrador, no capítulo IX para apresentar o mourisco Cid Hamete Benegueli, historiador árabe, tratado por Dom Miguel como um mero "embusteiro", forma de Cervantes veladamente se afastar da narrativa e tornar a obra invulnerável na visão dos inquisidores. Sob o abrigo da impunidade, o escritor cria um sistema onde pode disparar contra toda a estrutura política, social e religiosa que o sufocava. Dada a largada, a história do lunático e de seu amigo lavrador é a consumação dessa empresa, insuperável diante da ignorância que sempre andou junto daqueles que usaram a opressão, a censura e violência como única forma de diálogo.
No entanto, esse é apenas o tripé pelo qual Cervantes coloca a sua obra. Seus dois protagonistas, talvez os mais emblemáticos de toda a história da Literatura, Dom Quixote e Sancho Pança, passam por desconcertantes altos e baixos, por todo o fio de narração. Quixote é louco varrido, Sancho é um bruto capaz de ser investido de seu ajudante. Porém, a aparente sensatez de ambos no começo do livro são outro fundo falso criado por Cervantes: eles só atuam como malucos quando isso convém ao seu criador, especialmente quando ele decide transformar a sua pena em um agudo florete. Por conta disso, encontramos, em Dom Quixote de La Mancha , diálogos memoráveis entremeados por momentos de velhacarias sob a licença poética que cabe aos doidos varridos. A lógica do absurdo é o código vital de Cervantes. Afinal, não era tarefa simples se meter com o Santo Ofício, principalmente se tratando da Inquisição espanhola, certamente a mais tacanha de todas, na História.
O mestre espanhol o fez com impressionante impunidade e maestria. Um exemplo está na primeira parte da obra, quando os livros de cavalaria são condenados à fogueira, dos quais uns poucos escapam. Pode-se entender que o episódio da queima de livros é simplesmente uma paródia dos famosos autos-de-fé em que, com a liturgia macabra que a nobreza farisaica exigia, a Inquisição queimava publicamente obras aos milheiros (como fizeram todos os regimes de exceção da História, como o Nazismo), considerados heréticos ou de orientação judaica. O curioso é que a miopia dos censores de Cervantes não enxergou a galhofa de tal cena...
Retrato sem retoque
Na segunda parte de Dom Quixote , o Cavaleiro da Triste Figura e Sancho passam uma temporada no palácio dos duques. O sutil encontro do casal com a insólita dupla dissimula uma ligeira crítica contra a nobreza espanhola seiscentista, vazia, frívola, ignara e obscurantista de um país (era a época da União Ibérica, com a anexação de Portugal desde 1580) que servia de garganta por onde passava a todo o ouro da América para enriquecer a Europa, não sem antes encher a barriga de uma aristocracia pusilânime cujos duques da alegoria de Cervantes são o retrato sem retoque, a definição definitiva daquela casta. Nesse trecho do romance, quando o duque e a duquesa resolvem brincar inventando, em alguma parte de seus domínios, a Ilha de Barataria, Quixote investe Pança de governador do lugar. Em poucos dias, o rude Sancho se transforma num probo déspota esclarecido a la Voltaire. Vitimado pelas brincadeiras dos vassalos do duque, o rude companheiro do lunático fidalgo desiste do poder, e parte em busca de seu amo, exigindo que não quer ser julgado, já que sai do reino tão famélico quando entrou. Para meio entendedor...
A censura do Santo Ofício era, por assim dizer, burra demais para entender o recado. Realismo mágico temporão? Os moinho de vento de Dom Quixote eram a Inquisição, os padres dissolutos e farisaicos, a iniquidade, a corrupção, a vida de gado do povo, o fato de que tinha mais valor o homem submisso do que o homem lógico, e a sua virtude estava ligada tão somente à "pureza" do seu sangue perante a lei. Tudo sob a máscara do cavaleiro louco e do camponês simplório. Esse era o traço perene da pena cervantina: um libelo contra a hipocrisia do poder e a falácia da querela da limpeza de sangue – uma das muitas vergonhas que a história carrega às costas e que tanto mal causou à liberdade de expressão da cultura espanhola, que Miguel de Cervantes não cansou de acusar com sua astúcia e inteligência singular, burlando toda a "inteligenzia" inquisitorial. A alegoria de Dom Quixote de La Mancha serve de exemplo para tantos episódios que a mesma história produziu e ainda produz, nos dias de hoje. O fidalgo da Triste Figura ainda vive, passados quatro séculos, e a sua saga ainda continua .
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